O reconhecimento de voz em processo criminal realizada informalmente, sem observância do art. 226 do CPP, em analogia ao reconhecimento pessoal, não é prova capaz de sustentar uma condenação criminal, caso não tiver outras provas elementares probatórios capaz de sustentar a procedência da denúncia. Esse é o entendimento que prevalece no Superior Tribunal de Justiça, conforme HABEAS CORPUS Nº 853310 – SP (2023/0327079-1):
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de DAYANE EVANGELISTA ACACIO contra acórdão da 8ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação n. 1510031-68.2021.8.26.0228, assim ementado:
APELAÇÃO CRIMINAL ROUBO QUALIFICADO RECURSO DA DEFESA DOS RÉUS WESLLEY E VITOR PRETENDENDO A ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS E RECURSO MINISTERIAL VISANDO À CONDENAÇÃO DA RÉ DAYANE, NOS TERMOS DA DENÚNCIA Conjunto probatório que demonstrou, com segurança, a prática do delito por todos os acusados, sendo inviável a absolvição. Recurso da Defesa parcialmente provido, para reduzir as penas privativas de liberdade dos réus Weslley e Vitor, e Recurso Ministerial parcialmente provido, para condenar a ré Dayane como incursa no artigo 157, § 2º, incisos II e V, e § 2º-A, inciso I, do Código Penal. (e-STJ, fl. 30) Em suas razões, a parte impetrante alega a invalidade do reconhecimento por voz como prova única e exclusiva para a condenação.
Aponta descumprimento às determinações do art. 226 do Código de Processo Penal.
Insurge-se contra o regime inicial de pena porque fixado em contrariedade com o disposto nas Súmulas 718 e 719 do STF.
Requer a concessão da ordem, a fim de que seja restabelecida a sentença de 1º grau. Em caso de manutenção da condenação, pugna pela fixação do regime semiaberto para cumprimento inicial da pena.
Sem pedido liminar e dispensadas as informações (e-STJ, fl. 73), o Ministério Público opinou pelo não conhecimento do writ ou pela denegação da ordem (e-STJ, fls. 75-81).
É o relatório.
Decido.
Esta Corte – HC 535.063, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 10/6/2020 – e o Supremo Tribunal Federal – AgRg no HC 180.365, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020; AgRg no HC 147.210, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018 -, pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado.
Assim, passo à análise das razões da impetração, de forma a verificar a ocorrência de flagrante ilegalidade a justificar a concessão do habeas corpus, de ofício.
Consta nos autos que a paciente foi denunciada com outros dois acusados como incursa no art. 157, § 2º, incisos II e V, e § 2º-A, inciso I, na forma do art. 70, ambos do Código Penal.
Sobreveio sentença que julgou parcialmente procedente a pretensão acusatória para condenar Wesley e Vítor e absolver Dayane, nos termos a seguir:
O mesmo, contudo, não ocorre no tocante a Dayane. A versão por ela apresentada foi corroborada pelos relatos prestados pelas informantes Luciana e Alini nesta data, sendo que a vítima disse que não viu a acusada no local dos fatos, tendo somente ouvido a voz de uma mulher, voz esta que teria reconhecido na Delegacia como sendo a de Dayane. Esclareceu a vítima ainda que apenas reconheceu a acusada em audiência, porque a viu na Delegacia, onde realizou seu reconhecimento por voz.
Contudo, tenho que apenas o reconhecimento por voz realizado pela vítima na Delegacia e ainda de forma precária, na medida em que teria ficado escondida no banheiro, com a fresta da porta aberta, enquanto a ré falava, não se mostra suficiente para embasar um decreto condenatório, sendo tal elemento deveras frágil.
A acusada negou qualquer envolvimento com o crime e as testemunhas policiais, com seus depoimentos, não trouxeram aos autos outros elementos que pudessem evidenciar a participação de Dayane no delito em tela, ao contrário, disseram que Dayane já no local dos fatos falou que os réus eram conhecidos de seu irmão, mas que não sabia o que estava acontecendo.
Assim, tenho que não restou comprovado nos autos de forma suficientemente segura a participação da ré no roubo em tela, de modo que a dúvida quanto à sua participação impõe a prolação de um decreto absolutório em seu favor, na mais estrita observância ao princípio do in dubio pro reo.(e-STJ, fls. 59-60; grifou-se.)
O Tribunal de Justiça de São Paulo deu parcial provimento ao recurso ministerial para condenar também a ora paciente como incursa no art. 157, § 2º, incisos II e V, e § 2º-A, inciso I, do Código Penal.
A Corte a quo considerou o depoimento da vítima Rogerio Aparecido Santos que, embora não tenha visto a paciente no local dos fatos, pois estava deitado no assoalho da cabine do caminhão, reconheceu a sua voz, uma vez que era ela quem supostamente coordenava a ação criminosa. Referido reconhecimento foi realizado pelo ofendido na Delegacia de Polícia enquanto ouvia a conversa da paciente com o Delegado.
Com razão a parte impetrante.
Em julgados recentes, ambas as Turmas que compõem a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça alinharam a compreensão de que “o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa” (HC 652.284/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/04/2021, DJe 03/05/2021).
Analisando detidamente os autos, verifica-se que a condenação da paciente encontra-se calcada exclusivamente no reconhecimento de sua voz, não corroborado por nenhum outro elementos de convicção conforme se exige.
Não à toa o Juízo da 29ª Vara Criminal de São Paulo considerou extremamente frágil o substrato probatório apresentado, se valendo, acertadamente, dos princípios basilares do direito penal como o da presunção da inocência e do in dubio pro reo para absolver a paciente.
E conforme se observa, o dito reconhecimento não se revestiu de nenhuma formalidade. Não houve exibição de voz na delegacia, ou mesmo alguma espécie de confronto, mas uma identificação absolutamente informal da voz da paciente pela vítima, que ouviu uma conversa da acusada com o Delegado de Polícia através da fresta de uma porta, enquanto estava escondida no banheiro.
Não houve, assim, obediência, ainda que por analogia, às formalidades do art. 226 do Código de Processo Penal.
No âmbito desta Corte, já se decidiu que “[o] reconhecimento do suspeito do crime do art. 159, § 1°, do CP, por exibição de sua voz em delegacia de polícia, sem observância, por analogia, das formalidade do art. 226 do CPP e sem nenhum tipo de confronto, por perícia técnica, com a ligação dos sequestradores, não tem valor probatório para lastrear a condenação, principalmente quando não foi confirmado em juízo.”(HC n. 461.709/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/4/2021, DJe de 30/4/2021).
Por conseguinte, diante da fragilidade da proba obtida e da falta de outros elementos probatórios para sustentar a condenação da paciente, de rigor sua absolvição.
Ante o exposto, não conheço do writ. Contudo, concedo a ordem, de ofício, a fim de restabelecer a sentença absolutória proferida pelo Juízo da 29ª Vara Criminal de São Paulo em favor da ora paciente, nos autos da Ação Penal n. 1510031-68.2021.8.26.0228.
Prejudicado o pedido subsidiário.
Expeça-se alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver presa.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 27 de setembro de 2023.
Ministro Ribeiro Dantas
Relator
(HC n. 853.310, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 02/10/2023.)